terça-feira, 28 de março de 2017

Mentes brilhantes: conheça as características do cérebro de pessoas com altas habilidades cognitivas, os superdotados

Felipe Heusi Kossmann adorou Interestelar (Christopher Nolan, 2014). Segundo ele, é um filme que trata das possibilidades do universo de uma forma mais real, sem tanta dramaturgia como em Star Wars, por exemplo. Ele também gostou porque apresenta um assunto que já costuma pesquisar e pelo qual tem grande curiosidade: as teorias gravitacionais, a relatividade e a possibilidade de viajar no tempo. Logo, o gancho da conversa se perde e fica difícil de acompanhar o raciocínio da criança de 11 anos apaixonada por astronomia.

— Fiquei pensando se realmente é possível viajar através de um buraco negro, calcular e trabalhar com a dimensão do tempo de tal modo que possamos ir para o passado e para o futuro. Será que seríamos, então, sempre o resultado de uma ação futura de alguém que já viajou no tempo? — diz em uma conversa casual, que inclui fórmulas e citações de vetores.

    Aos 11 anos, Felipe Kossmann dedica-se a estudar a Teoria da Relatividade
    Foto: Marco Favero / Agencia RBS
Felipe é considerado uma criança com altas habilidades, condição conhecida popularmente como superdotada. Por enquanto, ele está no Núcleo de Atividades de Altas Habilidades e Superdotação (Naah/S), da Fundação Catarinense de Educação Especial (FCEE), a única instituição pública de Santa Catarina voltada a esse público. Mas ele sonha um dia em chegar à agência espacial americana, a Nasa.
Assim como Felipe, hoje 60 crianças e adolescentes estudam em atividades de suplementação acadêmica da FCEE para desenvolver melhor as próprias habilidades especiais. Um número pequeno diante da população do Estado, 6 milhões de pessoas. A Organização Mundial de Saúde (OMS) aponta que de 3% a 5% da humanidade se encaixa no perfil de superdotação. Porcentagem que pode ser maior segundo a doutora em psicologia educacional em altas habilidades da Universidade de Brasília (UnB) Angela Virgolim.
— Esse dado leva em conta apenas aspectos acadêmicos e desempenho escolar. Se considerarmos todas as formas de altas habilidades como arte, esportes, música, triplicamos o número de pessoas com potencial — explica a pesquisadora.
Felipe chegou ao Naah/S depois que a família e professores perceberam que ele não era apenas nota 10 em todas as matérias no boletim. O pai Leomar Kossmann, subtenente do Exército e formado em sistemas de informações, reparou na intensidade que o filho se concentrava em assuntos que gostava.
— Às vezes, ele se concentra em um objetivo e parece que não volta mais. Não sente fome, sede, nada. Só quer entender aquele tema até o fim — conta Kossmann.

A identificação de que o filho ou o aluno tem uma habilidade acima do normal costuma levar algum tempo. Enquanto isso não acontece, as crianças ficam marcadas como estranhas, chatas, CDFs. Fabiana Fleck, mãe de Gabriel, 14 anos, por exemplo, diz que não conseguia acompanhar o raciocínio do filho em determinadas situações. Além disso, se surpreendia com alguns comportamentos dele, como passar horas envolvido em cálculos de matemática avançada ou quando, aos dois anos, ele preencheu o desenho de um patinho com bolinhas de papel amassadas com tanta perfeição que impressionou os professores.
— Ele começava a me contar um raciocínio. Falava e tentava me explicar o assunto. Ao final, me perguntava: "entendeu mãe?" Eu respondia: "Não, filho" — conta Fabiana.
Apesar dos sinais durante toda a infância, Gabriel só chegou à FCEE quando conquistou a medalha de ouro na Olimpíada Brasileira de Matemática entre alunos de escolas públicas.


Diferentes interesses, foco extremo em uma atividade, aprendizado rápido e perfeccionismo são algumas das características de Gabriel que costumam aparecer em pessoas com altas habilidades. Mas a generalização dessas características e a ideia de que superdotados são gênios que sabem de tudo são os primeiros erros que levam a ignorar mentes com potencial ampliado. Gabriel, por exemplo, já sabia fazer cálculos aos três anos, mas aprendeu a lere escrever apenas aos oito.
— É preciso uma avaliação minuciosa. Não só do que eles sabem, mas do que gostariam de saber. Como aprendem e como gostam de aprender. Há certas matérias em que o aluno é muito bom, mas não gosta e não quer saber melhor — explica a pesquisadora Angela Virgolim, da UnB.
A coordenadora do Naah/S, Andréia Panchiniak, acrescenta que a desinformação sobre o assunto leva pais a inibir o potencial dos filhos porque não querem que eles sejam diferentes.
— Há diversos casos em que a criança é inibida pelos pais para deixar de ler e estudar. Isso porque não querem que seus filhos sejam diferentes — afirma a coordenadora do Naah/S.
As pesquisas sobre a inteligência e a mente de quem tem altas habilidades estão longe de ser conclusivas, apesar dos avanços nas últimas décadas. Segundo Angela, exames neuropsicológicos são usados somente quando há suspeitas de dificuldades, distúrbios de estresse ou emocionais.
— Sabemos que as pessoas de altas habilidades fazem conexões neuronais mais rapidamente. Realizam mais sinapses e têm um desenvolvimento cerebral específico para certas atividades — diz.
A doutora pela Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) Elisabete Castelon Konkiewitz, coautora do livro Altas Habilidades, Inteligência e Criatividade: Uma Visão Multidisciplinar, publicado em 2014, indica que o desempenho do processamento cognitivo associado à inteligência depende da complexidade e eficiência das conexões entre os neurônios. 
O mesmo livro também cita sujeitos com altas habilidades que teriam uma rede de neurônios com melhor transferência de informações entre diferentes unidades funcionais. Elisabete aborda ainda a questão genética e a importância das experiências de vida na formação das pessoas.
— São diferentes genes, possivelmente centenas, que causam predisposição para facilitar processos cognitivos. Mas isso tudo só fará sentido conforme as experiências vividas e estímulos. Desde a casa, escola, cuidados dos pais, esportes lazer, alimentação, sono, tudo pode influenciar na inteligência.
Outro problema apontado pelos pesquisadores é a falta de espaço adequado para que essas pessoas desenvolvam o próprio potencial. Uma vez que elas têm oportunidade de se desenvolver, as dificuldades seguem nas exigências para cumprir o currículo de ensino padrão e na aceitação das universidades.
— Diferente de outros países, não conseguimos alocar esses adolescentes em universidades, onde poderiam continuar o desenvolvimentos das suas especialidades. Há muita burocracia e muitas vezes é mais fácil migrar para outro lugar — completa Angela.
Há diversas leis, decretos, pareceres e resoluções na política de ensino nacional e estadual que contemplam alunos com altas habilidades. Desde 1996, a Lei no 9.394 estabelece "aceleração para concluir em menor tempo o programa escolar para superdotados". Tópico que também está presente na lei estadual no 170 de 1998 sobre o Sistema Estadual de Educação de Santa Catarina.
Por fim, resolução do Conselho Estadual de Educação dispõe que o avanço nos cursos ou séries/anos poderá ocorrer sempre que se constatarem altas habilidades ou apropriação pessoal de conhecimento por parte do aluno igual ou superior a 70% dos conteúdos de todas as disciplinas em que ele estiver matriculado. Mas, na prática, esses processos são muito mais complicados.
— Acontece muito isso e a escola fica insegura de fazer esse processo. Mas a autonomia é da escola, que deve levar o melhor para aluno. Essa falta de conhecimento da legislação dificulta o desenvolvimento dos que estão acima da média — contextualiza a pedagoga Liliam Barcelos.