Por trás de uma criança que vai mal na escola pode haver uma capacidade cognitiva privilegiada. Psiquiatras e psicólogos começam a compreender como essa característica pode se tornar uma desvantagem.
Revista Scientific American - por Marie-Noële Ganry-Tardy
Julien quase não se envolve nas
aulas, não faz lições e mostra pouco interesse por outras crianças. Ele assiste a distância à brincadeira dos colegas e jamais participa diretamente. Em casa, é considerado um menino "bom para nada". Diante disso, a diretora da escola aconselha seus pais a consultar um pedopsiquiatra. No ambiente tranquilo do consultório, o médico conquista sua confiança e propõe-lhe problemas dissociados de qualquer conotação escolar. Nesses
testes de inteligência, o menino obtém resultados excepcionais. Julien é superdotado, com
quociente intelectual (QI) próximo de 150, quando as outras crianças têm em torno de 100. Surge assim a questão: quantas crianças que fracassam na escola são superdotadas? É este paradoxo que abordaremos.
A diferença entre crianças precoces e superdotadas é simples: falamos em criança precoce quando seu Ql é superior a 130, e em superdotada quando excede 145. Às vezes uma nuance é introduzida: a criança superdotada possui um dom que nem sempre é fácil de ser percebido, acompanhado de um comportamento extrovertido ou introvertido, ao passo que a precoce é identificada mais facilmente: ela fala mais cedo que a média, tem vocabulário rico, sintaxe correta,
gosta de ler, é curiosa e tem
sede de aprender.
Na Universidade de Lille, na Françar Jean-Claude Grubar mostrou que o sono das crianças precoces comporta
fases de sono paradoxal (o momento em que ocorrem os sonhos) mais longas. As fases de sono paradoxal são longas nos bebês de 9 a 10 meses, diminuindo nas crianças. Além disso, os movimentos dos olhos (nas fases de sono paradoxal) são quase duas vezes mais frequentes nos superdotados, uma característica de adultos. Essas particularidades refletiriam uma capacidade de organizar, durante essas fases do sono, as informações acumuladas durante a vigília.
No cotidiano, as crianças precoces ou superdotadas se distinguem por uma série de detalhes quer para qualquer um que já esteve com elas, dificilmente passam despercebidas. Em primeiro lugar, desde o nascimento, os bebês são despertos, atentos e emotivos. Desde cedo eles fitam intensamente seus pais, manifestando uma atenção contínua. Quando crescem, os superdotados desenvolvem uma grande sensibilidade, informando-se de tudo o que ocorre ao seu redor. São atentos, empáticos (permeáveis aos sentimentos do outro, sentindo a alegria e a tristeza com mais intensidade) e lúcidos: desde os 2 ou 3 anos analisam e participam das conversas dos adultos, falando sobre temas da atualidade, por exemplo. Aos 6, uma criança superdotada pode compreender conceitos difíceis: enquanto uma criança "norma" define palavras como tampa, oceano ou perigo, a superdotada conhece o sentido de polêmica, insinuar ou apogeu. Seu senso de humor também costuma ser bastante vivo, sem contar a elevada capacidade de adaptação: quando em outro país, contam rapidamente na moeda local, habituam-se às características da língua e se localizam facilmente nos lugares públicos.
Uma criança precoce ou superdotada costuma ler muito e gosta de aprimorar incessantemente um desenho que começou. Sua
concentração é excepcional. Algumas têm um desenvolvimento motor avançado: aprendem a andar muito cedo, sabem coordenar os movimentos e desenham bem. Suas referências espaciais e temporais são aguçadas. A memória, a criatividade e a imaginação são muito desenvolvidas, assim como a flexibilidade do pensamento, e se sentem atraídas por adultos ou crianças mais velhas. Tendem ainda a formular várias questões sobre o sentido da vida ou do Universo.
• Grão de areia
Uma das características predominantes das crianças superdotadas é a lucidez, que se manifesta na facilidade com que compreendem, desde cedo, conceitos dos adultos. Voltadas para a abstração, são fascinadas pela ideia da morte. Diante de qualquer situação, percebem imediatamente os riscos, as possibilidades de fracasso ou de derrota. Essa consciência pode paralisá-Ias. Em vez de enfrentar um exame escolar, por exemplo, respondendo às questões uma após a outra, uma criança superdotada ou precoce analisa a todo instante os riscos ligados a uma resposta errada. É claro que muitos superdotados dominam essa angústia e obtêm resultados brilhantes. Entretanto, basta um pequeno grão de areia na engrenagem para que a criança se feche perigosamente em si mesma.
Retomemos ao caso de Julien. O medo de se sair mal era, sem dúvida, a razão de seus resultados ruins na escola. Com medo de ser avaliado por outras crianças, ele se distanciava. Suas verdadeiras capacidades intelectuais só se revelaram quando ficou à vontade com o psiquiatra e soube que os testes a que seria submetido não teriam nenhuma consequência. A obsessão do fracasso é geralmente a causa dos transtornos manifestados por crianças superdotadas. O problema é agravado em duas situações frequentes: a
dislexia e os problemas motores.
Como ocorre em relação às outras crianças, de 8% a 10% das superdotadas são disléxicas, isto é, têm problemas para aprender a ler e escrever. Essas dificuldades, quando não detectadas, são prejudiciais a todas as crianças, mas nas superdotadas as consequências são desproporcionais. Para diagnosticar um caso de dislexia, utilizamos o chamado teste de inversão. A criança é apresentada a pares de signos (letras, formas geométricas, objetos) idênticos, diferentes ou invertidos. Geralmente, no maternal o aluno já dispõe os objetos, classificando-os segundo as categorias: idêntico, diferente ou invertido. Aquele que confunde as categorias é provavelmente disléxica, pois não tem a noção correta da orientação das letras, dos grupos de palavras ou dos sons.
Aos 5 ou 6 anos, os superdotados constatam que compreendem tudo, mas não tiram boas notas. Eles sofrem de um conflito entre sua lucidez (eles sabem o que se espera deles) e as notas baixas que recebe: não compreendem por que não têm um bom desempenho. Assim, com uma imagem depreciada de si mesmos, eles podem se fechar e perder o interesse pelo que Ihes é ensinado. Nessas crianças, vários sinais de sofrimento psicológico chamam a atenção: resultados escolares medíocres, ansiedade, depressão ou agravamento da dislexia. Além disso, a percepção que têm da justiça torna insuportável para elas as punições que consideram desmerecidas. Em consequência, fecham-se ainda mais na solidão.
O segundo fator que agrava o temor do fracasso é o surgimento de problemas motores ou de orientação espacial, que se manifestam por vezes desde os 3 anos. As crianças superdotadas podem, como quaisquer outras, experimentar atrasos no desenvolvimento da orientação espacial. Como são mais lúcidas, surge um conflito. Se o teste de QI não for analisado com discernimento, os resultados poderão ocultar a causa dos problemas. Assim, uma criança superdotada mas que apresenta problemas de orientação espacial obterá excelentes resultados nas provas verbais, e desastrosos nos testes de orientação em um labirinto. O resultado do teste, que leva em conta as duas notas, será medíocre, e ela será considerada de nível médio e tratada como tal, o que reforçará seu sentimento de injustiça.
Numa criança superdotada, a distância entre a sua expectativa e o resultado obtido é capaz de levar a um impasse do qual ela dificilmente sairá. Isso explica o grande número de crianças muito inteligentes que fracassam na escola. A melhor forma de impedir esses fracassos consiste em diagnosticar a precocidade o mais cedo possível, tratando das dificuldades desde os primeiros sintomas. Um tratamento ortofônico para corrigir uma dislexia manifestada no final do maternal leva de 6 a 18 meses para surtir efeitos.
Para avaliar o atraso no desenvolvimento da orientação espacial, comparamos os resultados obtidos nas provas de performance dos testes de QI (percepção do espaço, quebra-cabeças e imagens complementares, identificação de códigos) e nas provas verbais. Se a distância entre o resultado da prova verbal e o do teste de performance geral for inferior a 10 pontos, será preciso observar melhor o desenvolvimento da criança para descobrir qualquer evolução desfavorável. Se a distância se situar entre 10 e 20 pontos, aconselha-se um acompanhamento psicomotor. Se for superior a 20 pontos, uma terapia familiar.
Na terapia familiar, os pais são atendidos junto com a criança e a história da família é evoca da. O objetivo é "dissolver" as inibições, procurando o que lhe suscita o temor do fracasso. Nas que sofrem de problemas motores ou de orientação espacial, constatamos que receiam executar gestos cotidianos, como amarrar os sapatos. Elas sabem que, se tentarem, se atrapalharão e serão alvo das chacotas dos colegas. Ao indagar os pais sobre essas questões simples, o psicoterapeuta constata que eles, muitas vezes, acentuam a falta de autonomia dos filhos ao tentarem ajudá-Ios. O psicoterapeuta deve ensinar a criança a reconquistar sua autonomia, fazendo-a compreender a importância disso e aceitar a ideia do fracasso. Paralelamente, ela deve ser acompanhada por um especialista em psicomotricidade, que corrigirá seus movimentos e a ensinará a distinguir o lado direito do esquerdo. O terapeuta construirá referências espaciais por meio de desenhos e jogos.
• Arte e esporte
As crianças superdotadas ou precoces correm um sério risco de desenvolver uma falsa personalidade ou, na linguagem dos psiquiatras, um falso eu. Qual a origem do risco? Quando depende excessivamente dos pais, a criança realiza esforços desmedidos para oferecer-Ihes a imagem que acredita corresponder às expectativas deles. Essa distorção da personalidade pode ocorrer com qualquer criança, mas as consequências são mais profundas nas superdotadas, que sentem intensamente as emoções e reações íntimas das pessoas próximas. Se perceber o menor descontentamento nos pais, fará tudo para não provocá-Io novamente. O psicoterapeuta e os pais deverão propor-lhe uma série de atividades, para que escolha sem constrangimentos e sem que os pais expressem opiniões. Mas será preciso evitar que mude frequentemente de atividade, algo que poderia desestabilizá-Ia.
Essas armadilhas não significam, entretanto, que crianças superdotadas sejam eternas vítimas de sua inteligência superior. Muitas delas experimentam um desenvolvimento motor e psicológico harmonioso. Podem ajudar os outros no plano afetivo, técnico, artístico, esportivo ou científico. É aconselhável, no período do maternal, passá-Ias para uma classe mais adiantada. Mas talvez seja melhor alimentar as capacidades lúdicas da criança, suas aspirações culturais ou esportivas, estimulando-a a manter ocupadas suas faculdades intelectuais, geralmente mais vivas.
Um diagnóstico sistemático do estado psicológico deveria ser feito antes dos 6 anos, no primeiro trimestre do maternal e durante o primeiro e segundo anos do 1 º grau. Infelizmente, os pais recusam-se a submetê-Ias a tais testes, temendo que sejam vistas como diferentes das outras.
Saiba mais
L'enfanl surdoué: I'aider à grandir, I'aider à réussir. J. Siaud-Facchin. Ed. Odile Jacob, 2002.
Educação da criança excepcional. Samuel Kirk, James Gallagher, Editora Martins Fontes, 2000.
O indivíduo excepcional. C. W. Telford & j. M. Sawrey. Editora LTC., 1988.