quarta-feira, 24 de abril de 2013

INCLUSÃO PARA SUPERDOTADOS

Quando se fala em educação inclusiva, logo se pensa na abertura de oportunidades para alunos com algum tipo de deficiência. Na contramão dessa linha de raciocínio, há o caso do superdotado, pouco lembrado pelos educadores.

Diferentemente do que se imagina, os superdotados – indivíduos com altas habilidades – enfrentam sérios obstáculos nos estudos e precisam de atendimento especial desde o ensino básico. No Brasil existem cerca de 8 milhões de pessoas com capacidade cognitiva acima da média da população, segundo a Organização Mundial da Saúde. Embora esse número se assemelhe ao de pessoas com deficiência, o foco da educação especial sempre esteve no deficiente. Faltam professores especializados, problema que ocorre também no campo da pesquisa: o país dispõe de apenas seis doutores que centraram suas investigações na superdotação.

A educadora Susana Pérez Barrera Pérez está prestes a se tornar a sétima doutora brasileira nessa área, mas é vista e respeitada como veterana até por seus professores. Ela ocupa hoje a presidência do Conselho Brasileiro para Superdotação e é consultora da Unesco no Núcleo de Atividades em Altas Habilidades e Superdotação do Rio Grande do Sul. Recentemente, em Curitiba, onde participou do 1º Seminário de Altas Habilidades e Superdotação, organizado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), Pérez falou sobre o tema de sua especialidade em entrevista exclusiva à Ciência Hoje.


Por que a senhora se interessou pela educação de superdotados?
Esse interesse surgiu em 1996 a partir de uma necessidade pessoal. Tenho dois filhos superdotados. Essa constatação, naturalmente, gera grande ansiedade nos pais: “Meu filho é superdotado; o que vou fazer com ele agora?”. Meus filhos faziam perguntas em excesso às pessoas com as quais conviviam, e eu recebia muitas queixas da escola. Comecei então a investigar o tema e acabei me interessando profundamente por ele. Hoje trabalho sobretudo com isso.
Quais as dificuldades da escola para lidar com superdotados? 
Por ter capacidade de assimilação acima da média dos colegas, a criança superdotada não consegue se concentrar nas aulas a partir de determinado momento. Ela fica entediada, desinteressada, e só quer fazer o que a diverte. Em geral o professor considera que o aluno está desmotivado. Ele não percebe que o interesse desse aluno está, na verdade, fora da escola. Não vê que o desinteresse provém justamente da incapacidade do mestre de propor algo que o estimule.
 
Que conduta os educadores de superdotados devem ter? 
A literatura internacional sobre o tema registra várias metodologias. Em muitos países, é comum a compactação curricular: os conteúdos que o aluno já domina são comprimidos e aprofundados segundo o ritmo pessoal, para que a criança não tenha tempo ocioso. A dificuldade da adoção dessa abordagem no Brasil é que, se aqui já é difícil acompanhar os alunos em turmas ‘normais’, o que dizer de dar acompanhamento individual. A ‘aceleração’ é a abordagem mais conhecida: o aluno adiantado ‘pula’ um ano de seus estudos regulares. É uma prerrogativa da legislação brasileira, mas tenho reservas quanto a esse procedimento. Os alunos que são ‘acelerados’ podem ser prejudicados em sua socialização e na parte emocional, por terem se afastado de sua turma de iguais. O método do enriquecimento, bastante aplicado no Brasil, é mais adequado. O aluno com altas habilidades freqüenta sua turma regularmente e no contra-horário recebe atendimento individual de um professor especializado, que irá trabalhar com projetos específicos. Ao voltar para a sala de aula, o aluno suporta o conteúdo que considera superado por ter uma motivação, uma espécie de ‘válvula de escape’. Assim o superdotado não perde o contato com colegas da mesma idade nem o convívio em grupo.

As altas habilidades manifestam-se apenas no aspecto cognitivo? 
Não. A ginasta Daiane dos Santos, por exemplo, tem alta habilidade na área corporal-sinestésica. Na área cognitiva, ela não precisa necessariamente ter o mesmo comportamento. Uma pessoa com altas habilidades se destaca por três características marcantes: tem capacidade acima da média em uma ou mais áreas específicas, mas é absolutamente ‘normal’ em outros campos; envolve-se demasiadamente com uma área – como o personagem do filme Billy Elliot [do diretor inglês Stephen Daldry, lançado em 2000], sobre um garoto cuja vida gira em torno da dança: ele dança no quarto, vai para a escola dançando, faz aulas de dança, lê sobre dança...–, algo muito próprio de pessoas com alta habilidade; possui elevado potencial para realizar coisas novas, criativas, na área em que tem capacidade acima da média. Muitas vezes não se consegue identificar claramente esses três atributos. Algumas pessoas não têm oportunidade de demonstrar sua criatividade ou de se envolver com seu aspecto mais desenvolvido.

Uma criança com alta habilidade que vive em ambiente desfavorável jamais terá condições de desenvolvê-la?
Não. Há uma combinação de fatores. Ocorre-me o caso de um adolescente de família pobre que não teve ambiente favorável para desenvolver suas habilidades, mas que chegou à faculdade. Decidiu ser físico. Como ele tem uma personalidade muito extrovertida, sempre pegou emprestado livros de vizinhos, conseguia se virar. A família nunca percebeu suas características especiais, mas ele tinha uma força interna muito grande. O desenvolvimento das altas habilidades é, sim, uma questão permeada por fatores ambientais, mas a personalidade influi muito.

Há muitos superdotados no Brasil?
Em 2006 atendemos cerca de 2.700 pessoas nessa condição. Mas as estatísticas oficiais refletem uma parcela muito pequena, diante da desinformação da população sobre o tema e da dificuldade de se identificar um superdotado. Estimativas da Organização Mundial da Saúde [OMS] revelam que a população brasileira de superdotados gira em torno de 3,5% a 5%, algo próximo a 8 milhões de pessoas. Mas é preciso esclarecer que esses números são obtidos com base em testes de QI, ou seja, refletem apenas superdotados na área cognitiva. De acordo com o psicólogo norte-americano Howard Gardner, existem pelo menos oito tipos de inteligência: lingüístico-verbal, lógico-matemática, vi-sual-espacial, interpessoal, intrapessoal, musical, sinestésico-corporal e naturalista. Pesquisa recente da Associação Gaúcha de Apoio às Altas Habilidades e à Superdotação mostrou que, no Rio Grande do Sul, 7,7% de indivíduos do ensino fundamental manifes-taram altas habilidades, aí incluídos os diferentes ti-pos de inteligência. Não podemos afirmar com certeza, mas é provável que o quadro não seja diferente nos demais estados brasileiros.

Como é a pesquisa sobre altas habilidades no Brasil? Em educação especial, ouve-se falar muito mais em deficientes do que em superdotados.
Dados da Associação Nacional de Pós-graduação em Educação mostram claramente essa disparidade. De 1971 para cá, há registro de um único trabalho sobre superdotação; sobre deficiência, algumas centenas. O país tem apenas seis doutores formados com foco em superdotação; o número de mestres não chega a 50 e, nos cursos de graduação, o tema ‘educação especial’ sequer é abordado. Embora no Brasil existam dois cursos de pós-graduação na área, eles estão voltados exclusivamente para estudos sobre deficiência.
 
O número de deficientes no Brasil é muito maior do que o de superdotados para justificar essa disparidade?
Segundo a OMS, 10% da população são de deficientes. Mas isso inclui todo tipo de deficiência: motora, visual, auditiva, mental, múltipla... Já o percentual de superdotados apenas no aspecto cognitivo é, como disse, de 3,5% a 5%. A diferença é, portanto, muito pequena e não justifica a falta de atendimento a superdotados.

Por que isso acontece?
O interesse da pesquisa reflete o preconceito que existe na sociedade. A própria legislação valoriza mais a inclusão de alunos com deficiência, e pouca gente reconhece que, como estes, o aluno com altas habilidades também precisa de educação especial. A idéia de que deficientes têm maior necessidade de atendimento especial é falsa. O que acontece é que a pessoa com deficiência, por possuir algo a menos, provoca na sociedade um sentimento de culpa. O superdotado, ao contrário, causa um misto de ódio e inveja, quando identificado, ou indiferença. No caso dos que se destacam na área artística ou esportiva, há, sim, valorização, mas os superdotados intelectualmente são considerados, na escola, como um aluno como os demais. A necessidade do deficiente é, de fato, mais evidente. É preciso dar reforço para o deficiente mental, adaptar a sala de aula para o cadeirante, criar material em braile para o cego... No caso das altas habilidades, não é necessário um recurso externo físico para que o estudante seja atendido. O que ele precisa é de uma adaptação curricular, de uma estratégia pedagógica diferenciada.

Os superdotados não são identificados à primeira vista...
O estereótipo do superdotado é o de um garoto branco, magro, de óculos e cheio de acnes. Características físicas nada têm a ver com altas habilidades. Diz-se também que há mais homens superdotados que mulheres, o que não é verdade. Gostaria de lembrar que os superdotados têm dificuldade para apresentar suas reivindicações à sociedade. Os portadores de deficiência vão para a rua se manifestar, exigir seus direitos, enquanto pessoas com altas habilidades não, devido ao preconceito. Quem é que chega e diz: “Sou superdotado, tenho meus direitos?” Quase sempre são os pais que procuram orientação, ao passo que no caso dos deficientes eles próprios fazem suas reivindicações. Pode parecer que não, mas politicamente isso tem um peso muito maior. Em uma sociedade mais esclarecida talvez alguns superdotados comecem a falar. Durante o 1º Seminário de Altas Habilidades e Superdotação, organizado pela UFPR, cartas escritas por superdotados foram lidas em público. A propósito, poucas universidades brasileiras se preocupam com o tema das altas habilidades. Na UFPR, o Núcleo de Apoio às Pessoas com Necessidades Especiais estuda a possibilidade de atender alunos da universidade com altas habilidades. Isso é inédito no país. Uma criança, um adolescente, que enfrentou dificuldades no ensino médio e fundamental também as terá na universidade. Provavelmente boa parte dos alunos que abandonam a faculdade é de superdotados que perderam o interesse pelos estudos, que se frustraram porque o curso estava muito aquém do que esperavam.

Que trabalho tem sido feito para conscientizar as pessoas sobre superdotação?
Uma boa iniciativa nesse sentido são os Núcleos de Atividades em Altas Habilidades e Superdotação, os Naahs, da Unesco, que devem ser implantados em todos os estados brasileiros. Em cada núcleo, há uma unidade do aluno, uma do professor e outra da família, onde os respectivos interessados podem ser atendidos por consultores preparados. A dificuldade de disseminação desses núcleos pelo país decorre da falta de pessoas capacitadas para atuar como consultores. Sugerimos que esses profissionais prestem assistência a mais de um estado, mas a Unesco rejeita essa idéia.

Qual é o papel do Conselho Brasileiro para Superdotação?
A entidade defende os interesses de pessoas com altas habilidades. Em todo o Brasil há várias associações menores que atuam com o mesmo objetivo, normalmente formadas por pais que se organizam para resguardar os direitos dos superdotados. Foi a partir da pressão desses grupos que conseguimos alguns êxitos. Os próprios Naahs surgiram dessa demanda. Até 2000 havia uma entidade nacional com órgãos representativos em cada estado, mas isso não funcionou. As pessoas que continuavam interessadas se reuniram em Minas Gerais em 2002 e desse encontro surgiu a idéia de se criar o Conselho, que auxiliaria superdotados em todo o país. Sua fundação aconteceu no ano seguinte. Hoje temos uma demanda muito grande de pais que querem orientação, de profissionais que nos procuram em busca de material para pesquisa...

Há em outros países trabalho com superdotados considerado exemplar?
Na Espanha existe uma legislação específica para as altas habilidades. Nos Estados Unidos, quase todos os estados têm programas que selecionam alunos por meio de testes. Identificados, eles são retirados da sala de aula nos períodos em que os colegas trabalham com conteúdos que eles já dominam. Daí passam a receber atendimento específico na área em que são ‘especialistas’, em uma turma mais adiantada ou em laboratórios de universidades. Em muitos países, utiliza-se a aceleração, mas em geral com oportunidades para o aluno fora da escola. Em países desenvolvidos há métodos que envolvem práticas em laboratório, coisa que não temos por aqui.

De que forma isso poderia ser implementado no Brasil?
Por meio de parcerias, acredito. Um aluno do ensino fundamental não tem acesso a laboratórios que o estimulem a estudar. Isso só está disponível em universidades. Uma articulação do ensino básico com o ensino universitário é, portanto, fundamental.

Escolas específicas para superdotados não seriam uma solução?
Felizmente não há escolas especiais para superdotados no Brasil, onde nenhuma experiência deu certo. Houve uma rejeição às instituições de ensino que lançaram mão dessa metodologia, pois as crianças não se adaptaram a elas. Nessa circunstância, era a própria escola que segregava. A inclusão, buscada como um paradigma dentro da educação especial, também deve ser levada em conta no que diz respeito às altas habilidades. Portanto, esse aluno não pode ser discriminado. Em turmas formadas apenas por superdotados, a criança se sente diferente das demais, no sentido de que ela é ‘melhor’. Mas isso, no fundo, tem um aspecto negativo, pois a sociedade olha para a turma, e para cada aluno, de forma diferenciada.

A senhora falou do tratamento dado à superdotação pela escola pública no Brasil. Como o nosso ensino privado trata a questão?
Se, por um lado, as escolas particulares têm uma estrutura mais adequada para o aluno superdotado, com laboratórios e materiais práticos, por outro, há um esforço ainda menor para identificá-lo. Em atendimento à nossa legislação, essas instituições também são obrigadas a prestar atendimento especial, mas novamente elas se voltam apenas para a deficiência. No Rio Grande do Sul temos recebido muita queixa de pais de alunos de escolas particulares que não recebem atenção especial. Há casos curiosos, entretanto. Em uma escola, os alunos tiveram que escrever um livro ao longo do ano. As crianças com altas habilidades, mesmo não identificadas, puderam então se envolver com uma atividade que permitia seu desenvolvimento, sem discriminação. E ficaram, portanto, muito interessadas.

Nossos professores estão preparados para esse tipo de abordagem?
Não. A formação de profissionais em condições de lidar com superdotados é muito precária. Pedagogos recém-formados nas melhores faculdades do país nunca ouviram falar em atendimento especial para crianças com altas habilidades. Temos procurado pressionar o governo no sentido de sensibilizá-lo. E tem dado certo. A iniciativa do MEC [Ministério da Educação] de debater a diversidade inclui as altas habilidades. Então, quando um município organiza um curso de formação de professores com recursos do MEC, ele deve obrigatoriamente abordar as altas habilidades. Em geral o tema recebe menos horas, mas ao menos o público ouve falar dele. O professor percebe então que já teve de lidar com superdotados em algum momento e começa a prestar mais atenção em seus alunos.  

Fonte: Ciência Hoje, vol. 41, Nº 245 - 2007.

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